"...brilhe a vossa luz diante dos homens,
de modo que, vendo as vossas boas obras,
glorifiquem o vosso Pai, que está no Céu."
(Mt 5, 16)

São vários os cristão alentejanos,
ou com profunda relação ao Alentejo,

que se deixaram transformar pela Boa Nova de Jesus Cristo
e com as suas vidas iluminaram a vida da Igreja.
Deles queremos fazer memória.
Alguns a Igreja já reconheceu como Santos,
outros estão os processos em curso,

outros ainda não foram iniciados os processos e talvez nunca venham a ser…
Não querendo antecipar-nos nem sobrepor-nos ao juízo da Santa Mãe Igreja,
queremos fazer memória destas vidas luminosas.

domingo, 14 de novembro de 2010

Beato Manuel Álvares de Estremoz
mártir do Brasil
Dentre as poesias que Anchieta consagrou aos Mártires do Brasil, merece particular menção a que dedica ao Beato Manuel Álvares e é «uma das mais belas pela delicadeza das ideias e viveza de forma», como afirma Armando Cardoso, ao traduzi-la para a revista Verbum (Setembro de 1970), da Universidade Católica do Rio de Janeiro, «num português singelo, 0 mais próximo possível do castelhano, na métrica, nas rimas e até no vocabulario»:

Ovejero,

de pastor hecho guerrero,

bien tocas el atambor!
- Agora toco mejor,
cuando, sin quejar, me muero,
con tal fuerza de dolor.

Ovelheiro,
de pastor feito guerreiro,
bem tocas o teu tambor!
- Agora toco melhor
quando morro qual cordeiro,
com tanta força de dor!

Isto o mote, em diálogo, que vai ser glosado em décimas:

Olha bem, Irmão Manuel,
como foi o teu nascer,
e quanto vieste a ser,
com tal honra de donzel,
pelo divino poder.
A graça te quis fazer
bom religioso primeiro,
e no transe derradeiro
por seu mártir te escolher
sendo dantes ovelheiro.

Foste ovelha, quando entraste
mansamente no curral,
e, como limpo animal,
os mistérios ruminaste
da vida celestial.

Tocou-me com violência
o francês, ladrão profano
e corsário luterano,
quebrando-me sem clemência
com braço cruel e insano.

Com suas cruéis espadas
meu rosto despedaçaram,
braços e pernas quebraram
com escopetas pesadas:
nem com isso se fartaram!

De facto, Manuel Álvares, natural de Estremoz, filho de Jerónimo Álvares e de Joana Lopes, fora pastor antes de entrar na Companhia em Évora a 12 de Fevereiro de 1559, com 22 ou 23 anos de idade.
Uma carta sua, dirigida a São Francisco de Borja e datada de 21 de Abril de 1566, fomece-nos deliciosas notas biográficas com a melhor transparência daquela alma lavada de alentejano rude e esperto: «...sendo eu hum pastor rustico me trouxe Nosso Senhor a esta sancta Companhia donde uza comigo de tantas misericordias sem eu merecer ... Pollo que me da Deos Nosso Senhor, muitos tempos há, desejo de ir ao Brasil, e averá sete annos que 0 peço, e bem me parece que não me conceder Nosso Senhor isto ategora foy por parte de minhas muitas imperfeições, as quais pella misericordia de Nosso Senhor espero de apartar de mim pouco e pouco que juntamente não possa. E o que me move mais hé ouvir outras muitas cartas de Japão e India que parece que me devião de mover algum tanto a estas partes, e parece que então me dá Deos Nosso Senhor mais firmes propósitos em o Brasil. Pollo que me parece que Deos Nosso Senhor quer que peça esta parte mais que nenhuma das outras...... Ainda que não seja mais que ser cozinheiro em o fogão e servir a todos os enfermos na nao. E lá no Brasil fazer o que me mandar a sancta obediencia, quer seja cozinheiro dos Padres e Irmãos, quer tenha qualquer outro officio. Meu officio agora hé de roupeiro, pollo qual no Brazil tomaria ser cozinheiro e barredor das casas, pera que me console, vendo converterem-se tantas almas a Deos Nosso Senhor e ajudando eu também pera isso se prestar...... Eu sou aquelle que, se lhe bem lembra a V. R., era comprador quando veio a este Collegio de Évora e não sabia ler nem escrever, e por pinturas e semelhanças dava conta ao Procurador do dinheiro, que recebia, e V. R. me mandou que soubesse ler e escrever, o que agora tenho, ainda que imperfeitamente» (Mon. Bras., IV, 340-343).
Conhecemos ainda por sua boca outros pormenores da vocação: no mundo, «era trabalhador e guardava gado». Um dia, «estando arando, me veio desejo de ser peregrino, pedir por Deus e não
ter nada; e, vendo as maldades do mundo, me veio desejo de entrar em uma religiao, qualquer que fosse; e, vindo donde estava para entrar em São Francisco, um cónego Gomes Pires me dirigiu à Companhia. Recebeu-me o P. Dom Leão».
Quando a nau foi abordada pelos calvinistas, Manuel Álvares, do castelo da popa, animava os Portugueses a que não se deixassem vencer por «estes filhos do demónio» e fazia-o «com tão fortes e tão altas vozes, que sobrepujavam sobre 0 estrondo das armas»! Nisto, diz-lhe «um marinheiro que tangia o atambor:
- Irmão Manuel Álvares, ó quem me dera quem tanger este atambor, para que pudesse eu pelejar contra estes hereges.
- Por isso não deixeis vós de pelejar; dai cá o atambor - respondeu, parecendo-lhe que tanto montava exortar os nossos com a voz dos seus brados, como com o atambor».
Verificando, porém, que as palavras eram mais eficazes, «lançou fora o atambor e tornou-se aos brados» ...
Como os inimigos «o trasião atravessado», logo que puderam, arremeteram a ele «e o tomaram, e fizeram nele muy grandes crueldades: porque lhe ratalharam o rosto com cutiladas, e lho fizeram todo em fatias: huns lhe tomavam as pernas e lhas estindiam, outros com os canos das espingardas lhas quebravam pollas canellas, e lhe davam nelas tantas porradas até que lhas deixavam todas feitas em pedaços: outros lhe tomavam os braços e lhos estendiam, e outros lhos quebravam pollas canas dando-lhe tantas pancadas neles até que lhos deixavam feitos em migalhas»!
Não findou aqui «a raiva e ódio que contra ele conceberam, porque o não quiseram logo acabar de matar, nem lançar ao mar, mas assim vivo o deixaram pera o verem mais pennar. Mas os Irmãos, em vendo ocazião pera isso, o meteram debaxo da tolda: e ally diante deles louvava ao Senhor, e dava muitas graças ao Senhor por lhe fazer tão grande mercê e lhe dar o que tantos annos há lhe pedia, dizendo-lhes com muita consolação sua 15 annos há que estou na Companhia e averá 9 ou 10 que me pagou: louvado seja ele, e bendito para todo o sempre já mais. Os Irmãos lhe lavaram todas as feridas com vinho, e lhas curaram» e levaram-no para um camarote e estavam ali «muitos consolando-se com ele, e alegrando-se de o ver morrer tão alegre e contente com a morte, a que ele chamava muitas vezes grande mercê de Deos. Mas ele não morreo logo, senão dipois, como adiante se diraa» («Relaçam», capítulo 31).
Entretanto, «mui cheo de feridas mortais», o «Capitão e Mestre da Nao Santiago trabalhou por se retirar para baxo onde estavam os Irmãos pera ali morrer entre eles. Os hereges todavia sempre o vieram seguindo ... e ali carregaram muitos sobre ele e o acabaram de matar ... Mortos os Irmãos que animavam, e morto também o capitão, acabou-se logo a peleja. Dos nossos marinheiros e passageiros que pelejaram morreriam até 15 ou 16 ... Dos imigos em toda esta peleja morreriam perto de 30» (Capitulo 32).
Neste tempo, não deixavam os piratas de «revolver as câmaras, e assim davam muitas voltas ao Irmão Manoel Alvres ... e tratavam-no mui mal arremessando-o muitas vezes de huma parte pera a outra». Trouxeram-no os Irmãos para «onde estavam dando à bomba e o tinham ali junto de si, lançado sabre uma arca» ...
Pediu-lhes «uma pouca de água, deram-lhe a beber par uma campainha, porque não havia ali outro búcaro. Ali se confeçou com o padre Andrade: e depois parecendo-lhe que sua ora estava já perto pediu a todos que lhe dicessem cada hum seu credo. Não tardaram muito huns 4, ou 5, daqueles hereges, os quais acodiam ali muitas vezes a fazer perrarias e fazer trabalhar os nossos: os quais chegando aonde ele estava o conheceram, e diceram este es aquele prete que gritava de lá de cima; toma, toma, bota a la mar: pegaram logo dele, e o levaram d'arrasto até o bordo da nao e dali vivo o lançaram ao mar, à vista dos Irmãos, ficando eles par huma parte magoados, e por outra muito consolados de o verem morrer por amor de Deos tão animado, e tão conçolado» (Capitulo 33).
Desta forma se realizou à letra a profecia do Mártir, comunicada ao Padre Pedro Luís Homem, «grande letrado, lente na Universidade de Évora e de muita virtude», numa tarde em que ambos discorriam familiarmente, durante o tempo de estudante de Pedro Luis, que disso deixou declaração escrita: «chamando a Irmão Manuel Alvares ao Irmão Pedro Luiz duas vezes por seu
nome, e dando de gume com a mão direita na cana do braço esquerdo, e depois com a mão esquerda do mesmo modo na cana do braço direito, e depois com a mão direita nas canas das pernas, disse (assim como ia dando) Aqui, aqui quebrado por amor de Deus, indo por esse mar para 0 Brazil. E dito isto, rindo continuou para onde ia. Isto contou 0 Padre Pedro Luiz muitas vezes e... se lembra com tanta certeza que o poderia jurar, salvante o nomear Brazil; porque ainda que se acha com esta determinação do logar para onde havia de navegar, não é com tanta certeza, como o mais. Isto se acrescentou aqui por ordem do Padre Reitor Pedro de Novaes hoje 20 de Julho de 99. Pedro Luiz».
o Beato Manuel teve um irmão na Companhia, 0 Ir. Francisco Álvares, que foi cozinheiro no Colégio da Baia, durante 40 anos.
(DOMINGUES, sj, Ernesto, "Raízes terrestres de 40 MÁRTIRES",
1971, Braga, Separata do «Mensageiro», pgs. 11 a 14)

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